sábado, 14 de março de 2009

Um diálogo com a Papisa

A Papisa / Carola Trimano

"Como os poderes da Papisa são essencialmente não-verbais, você poderá achar (como eu achei) que uma boa maneira de enriquecer o seu sentimento por esse aspecto arquetípico de si mesmo é procurar imagens que lhe personifiquem as muitas qualidades. Outra técnica proveitosa para vir a conhecer a figura misteriosa é abordá-la diretamente. Se a atmosfera (e as estrelas) estiverem certas, você poderá ganhar novas introvisões.
Como explicação desse método, incluo aqui uma conversação elucidante que tive recentemente
com a Papisa sobre a sua posição como número dois na seqüência do Taro. Eu estivera imaginando se o fato de ser a segunda poderia fazê-la sentir-se de qualidade inferior. Fossem quais fossem os seus sentimentos, percebi que ela não se estava esforçando ao máximo. Lá sentada, como sempre, há séculos, imóvel e serena, sabendo o que sabia e aparentemente segura da sua sabedoria. Qual era o seu segredo?
Quando me aproximei do trono da Papisa com essa pergunta engatilhada, ela enrijeceu
imperceptivelmente o corpo e parte dela fugiu à procura de abrigo (como acontece com os introvertidos).
Quando se certificou de que todos os seus postigos internos estavam fechados, a dama reconheceu minha presença e concedeu-me uma audiência com graciosa inclinação da cabeça.
Senhora Papisa, muitas mulheres acham hoje que a senhora deveria ser a número um do Taro.
Concorda com elas?
"De maneira nenhuma!" replicou ela. "Veja bem, faz séculos que o número um pertence ao Mago. Aliás, fica-lhe perfeito, não lhe parece? O numero um é esguio e móvel como a varinha dele, ideal para o seu tipo de mágica. Mas não serviria de maneira alguma para carregar um bebê, cozinhar um caldeirão de sopa ou tramar uma intriga. Não, para a minha mágica não há nada melhor do que esse gozado e gordo número dois. Sinto-me felicíssima com ele."
Depois disso, a dama ficou em silêncio, deixando-se cair no antigo poço da memória. Ao fazê-lo,
os anos foram desaparecendo e o seu rosto principiou a brilhar com o frescor do jardim do Éden.
"Sabe de uma coisa", voltou ela com um dar de ombros e uma risada de meninota que lembrava
Eva, "para um número par, o dois é meio esquisito, não lhe parece? Quero dizer, o dois é gordo e
substancial como um pote mas, ao mesmo tempo, é meio enrolado e esquivo, como uma cobra."
Nesse ponto, a oradora fechou os olhos e deixou-se levar outra vez com um sorriso recordativo...
Por fim, despertou com um esforço, reassumindo a pose e o comportamento da Papisa.
"Não dê atenção a esses freudianos, filha", disse ela. "Eles não entendem de cobras. Há um
montão de coisas de que eles não entendem em relação ao nosso malvado, manhoso, maravilhoso número dois! Sim, estou muito satisfeita com o lugar da mulher", concluiu suavemente, cantarolando uma melodiazinha na garganta.
Mas a senhora não preferiria ser a primeira?
Seguiu-se outra longa pausa.
"Você deve ler da esquerda para a direita, com certeza", disse ela finalmente, com os olhos fixos
num ponto cerca de trinta centímetros acima da minha cabeça e com vários séculos de profundidade.
Mas, Senhora, seja qual for a direção em que se lê, ao contar, o número um sempre vem primeiro!
"Isso é verdade, minha querida", assentiu ela placidamente, "e o número dois vem depois. A
matemática foi difícil para mim, também, a princípio, mas a gente logo se acostuma a ela".
Mas sem dúvida é melhor ser primeira?
"Ah, meu Deus!" suspirou ela. "Quanto trabalho vocês, modernos, arranjam para si mesmos com
toda essa avaliação! Não admira que tenham inventado computadores a fim de trabalharem um pouco para vocês."
Quer dizer que a senhora é contra a avaliação? Deve achar, então, que a gente ser primeira ou
segunda dá no mesmo?
"Oh, não. É claro que não dá no mesmo. É diferente. Muito diferente. Aí bate o ponto, entende?
Nem melhor nem pior - apenas diferente. Cada lugar tem o seu sabor - como as especiarias - ou os perfumes. Gosto de pensar que somos flores - o Mago, uma virga-áurea e eu, uma rosa."
Sim, percebo. Mas há duas coisas que ainda me intrigam. Dizem que Eva foi uma idéia tardia do
Criador - a costela de Adão, a senhora sabe. Isso é verdade?
"Tolice! A costela de Adão foi completada antes que ele o fosse. O fato é que Adão só deu por ela
mais tarde. Foi isso que aconteceu.
"Tenho aqui uma gravura, em algum lugar, que conta a história toda. Mostra exatamente o que se deu no Éden por ocasião da Criação, e o que ainda está se dando hoje. Você sabe", disse ela, olhando atentamente para mim enquanto procurava a gravura nas dobras da túnica, "você sabe", repetiu, "que vocês, crianças, ainda estão presos ao Éden de muitas maneiras. A sua criação ainda não acabou - esse é um serviço que vocês (como todos os filhos de Deus em toda a parte) terão de acabar pessoalmente...
Ah, aqui está a gravura!" gritou, mostrando esta excelente ilustração de William Blake.
A Fêmea Surgiu da Escuridão Dele / William Blake

"Por aqui se vê perfeitamente que Eva não é a costela de ninguém! É, antes, uma deusa e, como
todos esses imortais, nasce adulta - um nascimento milagroso. Atrás dela, ergue-se a sua gloriosa serpente. Não são lindas as duas? Mas Adão está dormindo; nem sabe que ela existe. Hoje ele começa a despertar para a realidade dela, mas ainda não sabe muita coisa a seu respeito. Na verdade, nem mesmo Eva está plenamente convencida da própria realidade. Se olhar para o rosto dela, você a verá ainda absorta num sonho, colocada, como a Miranda de Shakespeare, no limiar de um Corajoso Mundo Novo.
"Blake deu ao quadro o nome de A Fêmea Surgiu da Escuridão Dele. Muitas pessoas, hoje em
dia, dizem que foi apesar da escuridão de Adão, e não dela, que Eva conseguiu nascer. Enfatizam
também as palavras apesar de, ao contar como Eva (coitadinha) tem lutado todos esses anos contra a inconsciência do seu homem, sofrendo os muitos olhares torvos (e olhos pretos) que ele lhe deu ao longo do caminho! Não foi esse, porém, o modo com que Blake o pintou, ela disse. E também não é o modo com que o vejo. Segundo Blake, foi da escuridão de Adão - quase que se poderia dizer por causa dela, que Eva veio a nascer. (Eu gostaria que ela pudesse encontrar em seu coração, para oferecer a ele, um pouco mais de gratidão - e um pouco menos de rancor!)
"Imagine só: o mundo deles era um mundo de Jeová, de rigorosos mandamentos e proibições, e o Senhor Adão era o seu herdeiro presuntivo. Só na sombra da escuridão adormecida de Adão se poderia encontrar um ventre seguro para a concepção e um espaço secreto para o crescimento de Eva. Adão (bendito seja) guardou sua escuridão para ela e alimentou-a com seus sonhos. Ele sonhava com ela constantemente, você sabe - e suspirava por ela. De modo que foi, na verdade, por causa dos sonhos e da necessidade de Adão que Eva encontrou um jeito de realizar-se. Entende?
"Naturalmente, a Eva dos sonhos não correspondia à Eva da realidade. Mas, a princípio, nenhum
deles sabia disso. E visto que surgira dos sonhos dele, ela simplesmente os incorporou, pois ainda não encontrara sua essência própria. Hoje, quando ela descobrir quem ela é, ele descobrirá novos sonhos para sonhar. Um dia sonhará às deveras. Você verá.
"Oh, não se pode negar que os primeiros sonhos foram inadequados. Os primeiros sonhos muitas
vezes o são. Mas são também as sementes de toda realidade, minha querida. Lembre-se disso."
Por alguns momentos, a Papisa e eu permanecemos em silêncio, matutando juntas no Adão
adormecido. Depois, ela disse, de repente:
"Não se incomode com o que poderão dizer quando estiverem acordados, filha. Eles nos
alimentam com os seus sonhos e suspiram pela nossa verdadeira realidade. Nunca se esqueça disso.”
Após uma pausa, enquanto eu me lembrava de não esquecer, a Dama voltou-se para mim e
perguntou-me gentilmente:
"Parece que você tinha mais uma pergunta?
Bem, esta se relaciona com o Sol e a Lua. Há um boato segundo o qual a luz da Lua é de
qualidade inferior, pois ela não passa de um refletor da poderosa glória do Sol — ela não tem essência nem divindade próprias. Que é que a senhora pensa sobre isso?
"Ora", disse a Papisa, meneando a cabeça. "Quem quer que dê curso a boatos assim - não há de
ser mulher, você pode estar certa! Felizmente, tenho aqui uma coisa que lhe sossegará o coração."
Dizendo isso, a dama tirou do seu volumoso manto uma gravura. "Como está vendo", prosseguiu, "eis aqui um excelente quadro de Rafael - Deus Criando as Duas Grandes Luzes. Veja com os seus próprios olhos como Ele fez, pessoalmente, o Sol e a Lua ao mesmo tempo, com cada uma das suas mãos.

Deus Criando as Duas Grandes Luzes / Afresco de Raphael

"Não", continuou ela, "toda essa questão de primeiro ou de segundo não tem importância alguma. O dois é o número de toda a vida; sozinho, o um não pode fazer nada. Até o Senhor, como você não ignora, precisou do dois para poder encetar a tarefa da criação. Há outro famoso retrato d'Ele que o demonstra com perfeita clareza - o Deus Criando o Universo, de Blake.

Deus Criando o Universo / William Blake

Mostra o barbudo Criador com um compasso na mão, estendendo um braço comprido desde o Grande Círculo do Céu, em vias de traçar o círculo microscópico à imagem e semelhança do macroscópico. Para poder fazê-lo, Ele - até Ele - precisou usar as duas pernas do compasso: uma para fixar e estabilizar o centro do Seu círculo e outra para descrever-lhe a circunferência. Sim, até o Todo-Poderoso teria ficado impotente com um só.
Para fazer um todo é indispensável o dois... é indispensável o dois".


Fragmento de JUNG E O TARO -Uma jornada arquetípica

Sallie Nichols

2 comentários:

monica schumer disse...

Não é a toa que dizem por aí:"por traz de todo homem há uma grande mulher..."

Elias Balthazar disse...

"Quando o um pensa sobre si automaticamente pensa sobre o dois, pois o segundo contém o reflexo do primeiro em si"

Otima essa parte de Jung e o Tarô